Rodrigo Wolff Apolloni
O maior estrago provocado pelo crack, reflito enquanto caminho pela Travessa Nestor de Castro, é o da desumanização. Não a evidente, dos consumidores, que vemos bestas jogados aqui e ali ou correndo, olhos acelerados, em busca de uma conversa rápida sob um orelhão. Desumanização nossa, nosso próprio receio de caminhar sossegados, relógio virado para dentro no pulso, bolsa agarrada ao subir a escadaria da semimorta galeria Julio Moreira. Pois é: temos medo e, por causa disso, ódio dos espectros que vagam pelo centro velho de Curitiba. Supremo incômodo: gostaríamos, apenas, que eles sumissem, evaporassem/sublimassem sem deixar vestígios.
Percebi meu próprio horror outro dia, quando, em um fim de tarde, fui até a livraria Joaquim buscar uma encomenda. Na falta de vagas e na insurgência contra deixar R$ 8 por 15 minutos de estacionamento, parei a viatura na Rua São Francisco, naquela estranha segunda quadra entre a Riachuelo e a Presidente Faria.
Saí, peguei os livros e, quando voltava, percebi, da esquina, uma criatura agachada na frente do carro. Continuei caminhando e, a poucos metros, apertei o botão do alarme, que emitiu um sinal sonoro e acionou o pisca-pisca uma vez.
Automaticamente, a criatura – na verdade, um adulto jovem e esquálido – deu um pulo e se colocou de pé. Cachimbo apagado, olhou para mim e falou em voz baixa: “O senhor me desculpe”, para desaparecer em seguida.
Pego de surpresa, me dei conta de que aquela criatura não era, de fato, só uma “criatura”, uma besta. E fiquei encabulado. Gostaria de ter respondido alguma coisa, um solidário “sossegado”, ou coisa parecida. Não deu nem tempo. Fui para casa matutando.
No dia seguinte, porém, ao retornar ao Centro, encontrei as mesmas figuras sujas e assustadas. E, mais uma vez, vesti a armadura do medo, da impaciência e do ódio. Onde está a polícia? Por que não prendem os traficantes? Por que não prendem todo mundo? Por que não internam compulsoriamente os viciados? Por que, enfim, não os fazem sumir do mapa? Pois é: a reificação, essa conversão do homem em coisa, parece viciar tanto quanto o crack. E esse, talvez, seja o resultado social mais sério, mais trágico, da droga.
Texto originalmente publicado no jornal Gazeta do Povo
Ilustração de Fábio Salomão
Ilustração de Fábio Salomão
Um comentário:
Esse é, sem sombra de dúvida, um dos melhores textos do Rodrigo que eu já li.
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