terça-feira, 22 de novembro de 2011

Da relação entre gatos, dervixes e Deus

Rodrigo Wolff Apolloni para a Gazeta do Povo

Enquanto digito estas palavras, um minúsculo gato manchado (na verdade, uma gata) salta do chão para a cadeira ao lado e, de lá, para meus ombros. Ela é caolha – perdeu um dos olhos em circunstâncias misteriosas, dentro de um armário –, mas, mesmo assim, brinca, se aquieta e agita como todos os felinos. Soube, enfim, se adaptar, um grau de sabedoria dos mais difíceis para os seres humanos. Pois ela se aninha soberana junto à minha nuca, naquela postura de esfinge egípcia, como um pequeno cachecol. Quando movimento o cursor, olha atentamente para a tela e contrai ligeiramente as garras, provavelmente pensando em camundongos ou pássaros.

Em alguns instantes, porém, sua atenção é dominada por outro elemento – a outra gata da casa miando por atenção, por exemplo – e ela me abandona sem a menor cerimônia. Rápida como um raio, sai do escritório para, dali a pouco, rolar pelo chão com a irmã mais velha ou começar aquelas perseguições que só os gatos compreendem. Às vezes, nessas brincadeiras, livros e controles remotos voam, levando os bichos a uma agitação ainda maior. Em instantes, porém, reina o maior silêncio. E lá estão as duas, deitadas placidamente no sofá; ou, então, não estão em lugar nenhum, abrigadas de nossos olhos pelo tempo que desejarem. Bichos estranhos.
Essa integração – a fusão entre o fofo e o dotado de garras, entre a agitação máxima e a quietude – foi percebida pelos antigos, algumas vezes com benevolência. Os sufis (místicos do Islã conhecidos pela beleza e valor de seus conhecimentos), por exemplo, incluíram gatos em várias de suas histórias. Em uma delas, escrita na Pérsia por volta do século 12, um dervixe elogia um aspecto mais sutil do comportamento felino: a atenção plena. Segundo ele, se os crentes focassem o objeto de sua fé da mesma forma que um gato foca sua presa – como se todo o universo se resumisse àquela circunstância –, estariam muito mais perto de Deus.

De fato, ao acompanhar as duas gatas de casa, percebo essa outra integração: ainda que se movimentem o tempo todo e saltem de um evento a outro, elas são capazes de manter o foco naquilo que realmente interessa, no que está sendo vivido naquele instante. Algo que, penso comigo, está realmente muito próximo da sabedoria. E eu, que imaginava que Deus havia criado os gatos em um dia de humor extravagante, chego à conclusão de que Ele nos deixou, sim, uma pequena e ronronante chave para algo mais profundo.

Publicado na Gazeta do Povo em 22/11/2011

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